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O PACTO SOCIAL MORREU

03/06/2016

Em 2002, Lula publicou sua famosa Carta ao Povo Brasileiro. Nela fica claro que nada seria feito contra os interesses do poder econômico. Face a este fato, parte significativa da burguesia achou não haver mais motivo para não apoiar o candidato petista à Presidência da República. Ficou-lhe evidente que Lula não realizaria um governo de esquerda, implementando as reformas estruturais que os movimentos da classe trabalhadora vinham reivindicando, como a reforma agrária, por exemplo. Ficou-lhe explícito, no enunciado da Carta, que Lula acabava de apostar na efetiva harmonia de classe, que sua liderança junto ao movimento sindical e outros movimentos populares seria usada para isso. Em consequência, Lula vira presidente, tendo como vice um grande empresário.

A parte mais direitista dos capitalistas não deixou de pôr em dúvida o compromisso assumido por Lula. Errou. Deu-se o contrário. Assim que tomou posse, Lula mostrou estar disposto a ser fiel ao prometido. Para a área econômica de seu governo não vacilou em designar dois neoliberais notórios: Antônio Palocci (prata da casa) para o Ministério da Fazenda, e o banqueiro Henrique Meireles, para a presidência do Banco Central. Ricaços em festas. Banqueiros batendo palmas. No seio da classe trabalhadora, perplexidade, mas sem perdas de esperanças.

A conjuntura internacional não era ruim. A China se abarrotava de commodities brasileiras e o MERCOSUL aumentava suas compras de produtos do Brasil. Ainda sem suas crises econômicas, os Estados Unidos e a Europa continuavam grandes importadores do país.

Aí, a economia cresce. Capitalistas de todos os tipos se enchem de mais e mais dinheiro. A classe média, principalmente a alta, invade as concessionárias, trocando carro quase que anualmente. E ainda surge uma tal de Classe C, frequentadora assídua de supermercados. E assalariados da área produtiva conseguem aumentos salariais reais.

Mais gente comprando, mais gente contente.

A situação era, deveras, positiva para a economia do Brasil, permitindo, inclusive, que – após ricos se tornarem mais ricos, banqueiros nadando em dinheiro, agronegócio com lucros nas nuvens, cheio de créditos governamentais – um pequeno pedaço da renda criada chegasse a parte da classe trabalhadora. É o Bolsa-Família; é algum recurso para a educação, permitindo que filho de trabalhador pudesse ingressar na universidade; é o Luz para Todos; é o Minha Casa Minha Vida; é algum crédito para o pequeno agricultor. Tudo isso, sem incomodar os privilégios de monopólios privados; tudo isso sem nenhuma reforma estrutural; tudo isso sem implantação de impostos progressivos; tudo isso sem a reestatização de empresas como a Vale do Rio Doce, escandalosamente doada por FHC a grupos econômicos; tudo isso sem a efetuação da auditoria da dívida pública, tranquilizando a máfia do capital financeiro; tudo isso sem a paralisação dos leilões de petróleo.

Tudo conforme os ditames da Carta ao Povo Brasileiro. Regras de relação com o poder econômico mantidas e o sorriso largo de uma minoria que via muito ir para seu patrimônio, e muito pouco para a maioria da população.

Como os recentes governos anteriores davam caráter absoluto ao muito para poucos, insensíveis a qualquer política social para garantir a sobrevivência dos que ficam com muito pouco ou nada têm, as migalhas que chegaram a boa parte da classe trabalhadora provocaram um contentamento mais intenso do que o esperado entre os beneficiados. Provocaram também a ilusão de que capital e trabalho podem irmanar-se, conviver em paz.

Era o estabelecimento de um pacto social, da conciliação de classe como regra. Um setor muito pequeno da massa de trabalhadores se insurgiu contra isso. A maioria da classe trabalhadora, não. Não faltou dentro do movimento sindical quem se acomodasse, reproduzindo o pacto, numa visão economicista jamais existente na história das lutas operárias e outras de trabalhadores no Brasil. Parecia ter-se apagado na cabeça de lideranças sindicais a existência da luta de classes. E ai de quem se metesse a falar sobre a exploração do capital sobre o trabalho. Poucos davam ouvido para este tipo de abordagem.

O pacto social de Lula parecia ter vindo para ficar.

Tudo seguia a sua lógica. Nada poderia ser feito contra representantes das forças capitalistas no Congresso. O acordo da Carta não poderia ser afetado. O que valia, não só para a economia, mas também para a política. Daí o cuidado em não se apurarem os crimes da ditadura civil-militar; dai não se tomar medida para quebrar o monopólio da Globo e de outras famílias dos meios de comunicação, ao contrário, liberando-lhes cerca de 9 bilhões de reais em publicidade; daí porque se evitou tributar as grandes fortunas e todo tipo de capital especulativo; daí porque não se mexeu no monopólio da terra, inviabilizando a reforma agrária… Enfim, nada disso e outras iniciativas que pudessem contrariar o poder econômico poderiam ser tomadas. Sem isso não haveria governabilidade, diziam Lula e o PT.

Política é uma forma de fazer negócio, dizem a burguesia e seus agentes. E aí entra o vale-tudo. Todo tipo de roubo lhes é válido. Sem esse princípio, sequer eles se imaginam. Integrantes do PMDB, do PTB, do partido de Maluf e outros do mesmo campo ideológico acharam estar subjacente na sua aliança com o governo petista seu direito de praticar a corrupção, roubando dinheiro do povo para servirem a si e a seus senhores do capital privado. E deixaram claro: sem isso não há governabilidade. Nasce o Mensalão, mais um filho crescido do financiamento privado de campanha. Compra de candidaturas para a apropriação privada de mandatos.

A ultradireita se assanhou. Pensou já ter chegado a hora de derrubar o governo. Deu-se mal. A economia estava em alta. A quase totalidade da burguesia não queria cansar-se de ganhar dinheiro. Processos contra Genoíno, Dirceu, Delúbio e mais alguns do PT, e a paz se impõe.

Lula e o Brasil enchem os jornais de todo o mundo de manchetes, em que o centro de tudo que era dito era o pacto social brasileiro. União de tanta gente de salário mínimo com todo tipo de rico ilimitado, de banqueiros aos adotados pelo Bolsa-Família. Choveram opiniões de que o Brasil estava construindo sua socialdemocracia. Vozes reformistas, de conciliação de classes, ecoam em todas as plagas.

Um susto. Crise econômica nos Estados Unidos. Mercados em pane. Lula foi logo dizendo: calma, “é uma marolinha, a ordem é comprar, comprar…” Claro, a China continuava valente. Principal mercado para os produtos do Brasil. O MERCOSUL, de seu lado, não falhava. E a Europa ainda não tinha chegado a seu melancólico 2009.

Aparentemente, nada a reclamar – diziam economistas. O Brasil teria escapado do susto.

Chega o último ano de governo de Lula, PIB elevado, 7,5 % de crescimento. Nessa situação, com muito para poucos e pouco para muitos, esperanças de todos os tamanhos, do tamanho do que cada um podia ter, o pacto social permanecia. Lula vira “o cara”.

Viva a Carta ao Povo Brasileiro!

Viva o pacto social!

Viva a governabilidade!

Entretanto, é próprio da crise do capitalismo fazer suas peregrinações. Sai de uma região, vai para outra. Chega aqui e ali em movimento de Tufão. Resolve passar uma boa temporada na Europa. A China toma suas precauções. Diz ao mundo que, porque passou a vender menos, passou a comprar menos. O Brasil recebe o aviso.

Lula foi-se e com ele sua Marolinha. Vai-se o crescimento econômico. E tome queda do PIB! Dinheiro para medidas anticíclicas é usado. Não é, porém, um saco-sem-fundo. O saco não para de esvaziar-se. A Marolinha de Lula vira o Marolão de Dilma. É a crise econômica. Quem assumirá seus custos?

Dilma mantém-se fiel à Carta. Diga-se de passagem, sem esta fidelidade não seria a candidata de Lula. A mãe do PAC é filha da Carta. Nada de contrariar os aliados ricos, seus partidos e meios de comunicação. Mais que Lula, desonera grandes empresas, reduzindo suas contribuições junto à Previdência Social, sob o compromisso de que as beneficiadas tudo fariam para admitir mais trabalhadores, reduzindo com isso o índice de desemprego. O que jamais aconteceu. Outras desonerações para beneficiar capitalistas não faltaram. Medidas que contaram com o apoio no Congresso de todos partidos dos grupos econômicos. Uma sangria nos cofres públicos, que deixaram de receber dezenas de bilhões de reais. Como antes, nada contra os interesses de financistas, nenhum imposto progressivo. Nada que alterasse a propriedade da terra. Nada de parar com leilões de petróleo; nada de parar com privatizações chamadas de “concessões”.

Os princípios da Carta são sagrados, intocáveis.

E a crise econômica cresce, cresce sem parar, e dá logo luz à crise política. E a saída? Passos do governo para a esquerda, recusando-se a tirar da classe trabalhadora o pouco que tem, não seriam aceitos pelos aliados de direita, PMDB, PP, PSD etc. Seria ficar mal com os aliados. Com aliados não se brinca! Bom, então, a saída é pela direita. Caminho, inclusive, para mandar às favas o tal do impeachment-golpe. Collor, Sarney, Maluf, Renan, Kassab e seus sócios de ideologia não negariam fogo.

Assim sendo, tome ajuste fiscal! Tome custos da crise econômica nas costas dos trabalhadores! Tome Joaquim Levy! O banqueiro salvador, neoliberal de carteirinha. Em resposta, a direita parece acalmar-se. Pura trégua momentânea, esperando mais.

Todo esforço possível pela Carta!

Todo esforço possível pelo pacto social!

Todo esforço possível pela governabilidade!

Trabalhadores não aceitam a brincadeira. Vão às ruas. Exigem de Dilma mudança na política econômica, que obedecesse ao prometido na campanha eleitoral de 2014.

Dilma fica entre a Carta e milhões dos movimentos sociais que a elegeram. É obrigada a algum recuo, ainda que tímido, de seu ajuste fiscal, assegurando não mexer em direitos dos trabalhadores. Os de seu apoio de direita, sentindo-se fortalecidos com o crescimento de outras direitas nas eleições de 2014, acharam ter chegado o momento de unir-se a seus irmãos ideológicos e programáticos. Acharam que tinha chegado a hora do neoliberalismo puro, sem pedacinhos do PIB para a classe trabalhadora. Acharam que sua relativa convivência com direitos trabalhistas, aceitando a distribuição de coisas poucas para os de baixa e baixíssima renda era apenas circunstancial, conjuntural, inerente a um momento em que alguns ganhos dos trabalhadores, algumas políticas sociais, em nada afetavam os lucros gigantescos dos grupos econômicos. Mas que, com a crise econômica, diminuição da produção de riqueza, a lógica é outra. Determina, mais que nunca, quem está no poder. E quem está no poder é a burguesia. Desta forma, paga pelas desgraças da economia quem não está no poder, a classe trabalhadora.

Vem a debandada da direita governamental.

De um a um, indivíduos e partidos, velhos aliados de direita da governabilidade, foram-se afastando do governo. O golpe parlamentar de Estado se concretizou. Dilma é arrancada do governo.

Fim da Carta. Fim da governabilidade.

Fim de ilusões. A luta de classes ficou nua.

O PACTO SOCIAL MORREU.

Antônio de Freitas