Argentina – José de San Martín (1778-1850) (Emancipación)

Contexto :

A Revolução Francesa, com sua palavra de ordem de “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”, inicia os tempos das revoluções burguesas na Europa. A independência dos EUA tinha sido um prólogo dessa onda revolucionária. O desenvolvimento das forças produtivas tornava impossível a convivência de um regime aristocrático, feudal e obscurantista com os novos atores sociais e políticos.

A burguesia comercial, industrial e financeira precisava controlar o Estado. A Revolução política será feita pela pequena burguesia e pelos pobres de toda a França, com medidas radicais que transcenderão as próprias palavras de ordem democrático-burguesas. Porém, uma vez liquidado o poder da aristocracia retardatária, a burguesia, como classe consolidada, substituirá os setores políticos mais radicalizados e imporá o atual Estado burguês.

Na Espanha, o prematuro levantamento democrático-burguês das Comunidades de Castela e das Irmandades de Valência foi esmagado a ferro e fogo, consolidando-se um regime parasitário onde a burguesia era uma expressão raquítica e invertebrada.

Os liberais espanhóis aderiam às novas idéias da Declaração do Homem e ao pensamento da ilustração (Rousseau, Voltaire, Montesquieu, D’Alambert e, também os espanhóis, Jovellanos, Campomanes, Flores Estrada), mas, também, têm de enfrentar os exércitos napoleônicos que invadem sua pátria. Os invasores trazem “idéias progressistas”, mas, em última instância, são invasores.

A Espanha liberal e progressista deve, ao mesmo tempo, enfrentar dois inimigos : as forças invasoras e a nobreza espanhola. Derrotados os exércitos franceses, os liberais espanhóis não conseguem completar sua obra sobre a nobreza obscurantista e esta, com Fernando VII à frente, encarregar-se-á de reprimir e liquidar a tendência democrático-burguesa.

A guerra de independência americana se enquadra nesse cenário, onde se combina a luta pela liberdade e pela soberania, conjuntamente com a luta pela democracia e os Direitos do Homem.

Antecedentes :

Vários fatores influem na proeza sanmartiniana : 1) as insurreições indígenas anticolonialistas (as de Túpac Amaru e Túpac Katari, fundamentalmente); 2) a insurreição popular do povo espanhol de 2 de Maio de 1808 (contra as forças de ocupação francesas); 3) a defesa armada contra os franceses; 4) a guerra de guerrilhas espanhola contra a invasão napoleônica.

Colateralmente, incidem na campanha libertadora : 1) o triunfo contra as invasões inglesas de 1806 e 1807; 2) a campanha do Exército do Norte comandado por Juan José Castelli e, depois, por Manuel Belgrano; 3) O sermão jacobino de Mariano Moreno e seu Plano de Operações.

Dados biográficos :

Nasce em Yapeyú, povoação guarani de índios convertidos, às margens do Rio Uruguai (atual província de Corrientes, Argentina). Seus pais, espanhóis, não pertencem à nobreza, como indicado na História Oficial argentina, e têm de regressar à Espanha devido à impossibilidade de progredir economicamente no Novo Mundo.

Já em Málaga, José Francisco estuda em escola pública (a historiografia oligárquica assinala que ele estudou na Escola de Nobres). Aos 13 anos de idade, incorpora-se ao exército e, com a farda real, combaterá mouros, ingleses, portugueses e franceses. Destacar-se-á na batalha de Baylén, ascendendo à patente de capitão.

Alistado nas facções do liberalismo espanhol e ante a derrota das tropas hispânicas na península, translada-se à América, junto a outros revolucionários, para continuarem a luta pela democracia e soberania popular.

No Rio da Prata, põe-se às ordens dos governos pátrios e se envolve nas disputas políticas, ao lado das tendências mais radicalizadas (partido morenista, o jacobinismo crioulo que seguia as posições do primeiro secretário da Junta Pátria, Mariano Moreno, morto misteriosamente dois anos antes).

Depois de formar o Regimento de Granadeiros a Cavalo, empreende a luta contra o poder colonialista. Esboça o plano militar para libertar o sul do continente e, para alcançar esse objetivo, estabelece-se em Cuyo, sendo nomeado Governador.

Ali, constrói o Exército dos Andes que libertará o Chile e o Peru.

Enfrentado com o governo de Buenos Aires – em mãos de Rivadavia e dos liberais pró-britânicos – e acossado pela oligarquia limense e o poderoso exército colonialista retirado na serra, regressa primeiro ao Chile primeiro e, depois, à Argentina.

Acossado pelo partido pró-inglês da Argentina, partirá à Europa praticamente como exilado político. Morre na França em 17 de Agosto de 1850.

Síntese de sua atuação :

A doutrina sanmartiniana se construiu sobre a própria proeza libertadora. Aqui, marcaremos fatos concretos que definem uma doutrina nacional, anticolonialista, popular e revolucionária :

Exército-Povo : Formação de um novo exército com base na incorporação do povo (índios, negros, gaúchos). Aplicação da teoria de “o povo em armas”. Com base na experiência da guerrilha espanhola, San Martín aplica este recurso em três frentes e com três comandantes surgidos do povo : Martín de Güemes (norte do Rio da Prata); Manuel Rodríguez (Chile) e Francisco Vidal (Peru).

Nacionalismo econômico : No governo de Cuyo, San Martín decretou a “economia de guerra”. Ali, deu-se uma das primeiras experiências de “modelo endógeno”. Toda a província mobilizou seus recursos em função do plano de libertação, constituindo um modelo de cooperação entre trabalhadores, combatentes e governo.

Criaram-se fábricas, oficinas, amassa-fios, semeadouros planificados desde a Intendência, laboratórios, galpões, sistemas de irrigação, etc. Conjuntamente, para conseguir essa base de plena produção, levou-se adiante uma política confiscadora e expropriadora contra os setores mais acomodados e aqueles que eram considerados inimigos da Pátria (nisto, cumpriram um papel singular a política tributária e a libertação dos escravos).

Defendeu, tanto no Chile quanto no Peru, uma economia protecionista, defendendo a produção nacional e fomentando o crédito e o mercado interno. No Peru, fundou um Banco nacional, com capitais e dirigentes peruanos.

Justiça Social : A sensibilidade social de San Martín se expressa sempre em medidas concretas, incorporando à sociedade os mais marginalizados, na qualidade de cidadãos, iguais perante a lei.

Liberdade de ventre e liberdade a todo cidadão que, na condição de escravo, pise território libertado; supressão da servidão e tributo indígena, atenção aos desamparados e às crianças abandonadas; educação popular; incorporação da mulher ao ensino; humanização do sistema judicial e carcerário; campanhas populares de vacinação; sistema tributário progressista; etc. são algumas medidas democráticas que San Martín impõe a partir de três governos (Cuyo, Chile e Peru).

Independência e Unidade Latino-americana : Os acordos Mosquera-Monteagudo (Bolívar-San Martín) são a máxima expressão e intenção de avançar na formação de uma Confederação das ex-colônias espanholas. Toda a campanha sanmartiniana está enquadrada na necessidade de alcançar a União Americana e nada nem ninguém o apartará desse pensamento.

Anticolonialismo : Expressa a posição anticolonial em toda sua façanha política e militar. Para San Martín, a contradição é “Pátria ou Colônia”. San Martín entende que todo colonialismo deve ser combatido. É por isto que, anos depois da independência, e ante a agressão anglo-francesa ao Rio da Prata, oferece sua espada para combater o novo inimigo da Pátria.

Partido Americano : Desde seu início na vida política, San Martín se incorporou às Lojas progressistas que funcionavam na Europa. Chegado ao Rio da Prata, imediatamente criou a Loja Lautaro, fez o mesmo em Cuyo, no Chile e no Peru. San Martín concebia a necessidade de contar com uma estrutura de quadros e militantes para cumprir com os objetivos de independência e unidade americana. É por isso que, ao ter oportunidade, declara : “…não sou de nenhum partido, mas me retifico, sou do Partido Americano”

Ética e Exemplo :

O sacrifício permanente e o desprendimento caracterizam a vida e a obra de San Martín, imprimindo essa conduta a todo o seu entorno. Renuncia a soldos e prêmios; é o primeiro a dar o exemplo no trabalho e no sacrifício; detesta o luxo e os enfeites, vive austeramente até sua morte; pratica o igualitarismo e a defesa dos mais humildes. Por isso, dirá para as massas populares do Peru : “minha missão é proteger o inocente oprimido, favorecer o desgraçado … eu venho pôr fim a este tempo de miséria e desgraças.

Síntese de seu pensamento :

Para a época, San Martín foi um revolucionário cabal. Influenciado pelas idéias inspiradoras da revolução francesa e do liberalismo espanhol, abraça a causa da emancipação hispano-americana.

Republicano por convicção propõe para a América anarquizada uma monarquia de corte constitucional, condicionada pelos deputados eleitos pelo povo. As idéias sociais de Thomas Paine na Declaração dos Direitos do Homem são sua bússola. Também segue o pensamento utilitarista de Jeremias Bentham, entre outros.

San Martín propõe claramente que “o melhor governo não é o mais liberal em seus princípios, mas sim aquele que faz a felicidade dos que obedecem”.

O Libertador do Sul é, antes de tudo, patriota sul-americano, nacionalista popular, democrata republicano e anticolonialista.

Citações importantes :

A luta pela libertação e pela independência : “Sejamos livres, o resto não importa nada”. / “Livres ou mortos, jamais escravos”.

 “Companheiros do exército dos Andes : Temos de fazer a guerra do modo que podemos : se não temos dinheiro, carne e um pedaço de fumo não irão nos faltar : quando as roupas se acabarem, vestir-nos-emos com os trapos que nossas mulheres nos fizerem e, se não, andaremos nus em pêlo como nossos compatriotas, os índios : sejamos livres, e o resto não importa nada… Companheiros, juremos não tirar as armas da mão, até vermos o país inteiramente livre, ou morrermos com elas como homens de coragem”.

Em carta a José Gervásio Artigas, chamando-o à unidade : “…transijamos todos e dediquemo-nos unicamente à destruição dos inimigos que querem atacar nossa liberdade”.

Reivindicando os direitos dos indígenas : “Aos índios naturais do Peru : Compatriotas, amigos descendentes todos dos Incas. Já chegou para vós outros a época venturosa de recobrar os direitos que são comuns a todos os indivíduos da espécie humana, e de sair do estado de miséria e de abatimento a que os opressores de nosso solo os tinham condenado . . .”

Com respeito à educação : “A instrução é mais poderosa que nossos exércitos para sustentar a independência”.

Unidade hispano-americana : “Os americanos das províncias unidas não tiveram outro objetivo na revolução a não ser a emancipação do mando de ferro espanhol e o pertencer a uma união” / “…divididos, seremos escravos; unidos, estou seguro que os bateremos…”.

Contra os vendilhões da pátria : “O que não posso conceber é que haja americanos que, por um indigno espírito de partido, unam-se ao estrangeiro para humilharem sua pátria e reduzi-la a uma condição pior que a que sofríamos nos tempos da dominação espanhola. Tal felonia, nem o sepulcro pode fazer desaparecer”.

Definição partidária : “…eu sou do Partido Americano”.

Povo-exército : “A Pátria não faz o soldado para que ele a desonre com seus crimes; nem lhe dá armas para que ele cometa a baixeza de abusar destas vantagens, ofendendo os cidadãos com cujos sacrifícios ele se sustenta…”. / “Acordai que vosso grande dever é consolar a América, e que não vindes fazer conquista, mas sim libertar povos…”

Justiça Social : “minha missão é proteger o inocente oprimido, favorecer o desgraçado… eu venho pôr fim a este tempo de miséria e desgraças…”

San Martín e Bolívar

A relação entre San Martín e Bolívar sempre foi de afeto e mútua admiração. As oligarquias nativas, tanto argentinas quanto venezuelanas, inventaram, para minimizar o potencial revolucionário de figuras tão imponentes, uma disputa de poder e ambições.

Nada disto é certo : Bolívar sempre tratou com grande respeito o Libertador do Sul e San Martín admirou Bolívar como o grande homem que concluiria a façanha americana.

Em Guayaquil, encontraram-se e acordaram a melhor forma de terminar com sucesso a guerra anticolonialista. San Martín não podia ser o condutor : o governo portenho não apoiava sua campanha e a oligarquia limense tinha-o desgastado a ponto de sofrer fortes questionamentos no seio da própria oficialidade patriota. Bolívar, sim, podia continuar e concluir a luta.

Assim entendeu San Martín e, tão profundo foi o amor pelo Libertador, que fez sua filha pintar um retrato de Bolívar, que foi conservado até sua morte em sua alcova. A legenda pintada nesse retrato era : “unidos seremos invencíveis”.

Transcendência histórica :

A doutrina de José de San Martín se baseia, fundamentalmente, na obra realizada nos três governos de que se encarregou, no transcurso de sua vida : o Governo de Cuyo, o do Chile e o do Peru. Há um único San Martín, o líder do povo em armas e o líder político revolucionário.

Se bem que a oligarquia tenha tratado de congelar a figura do Libertador no bronze, sua obra e pensamento transcende a camisa-de-força da historiografia oficial. Para o povo argentino, San Martín é o Pai da Pátria, o Libertador, o Patriota e o herói por excelência.

Como assinalava Rodolfo Wash : “Dizemos que San Martín é nosso contemporâneo porque os problemas básicos que ele enfrentou são os mesmos que, sob distintas formas, a Argentina tem ainda pela frente e porque se chocou contra concepções e interesses parecidos aos que continuam se opondo aos reclamos de Independência, Liberdade e Justiça do povo argentino”.

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